sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

PERDÃO SENHOR

Saí desnorteado... Foi uma porrada e tanto na cabeça. Quando cheguei na calçada, a cena que vi foi terrível. Apenas os pés estavam pra fora... Dentinho olhou pra mim e falou chorando:

-Atropelaram o Muga, Molusco! Dentinho se agachou na frente do carro: -Ele tá preso lá embaixo.

Só faltava essa, logo o Muga, e na frente do bar...puta que pariu! Mas espera aí, conheço esse carro. Caralho, minha cabeça tá pesando uma tonelada. Tombei com a cara no chão.


Duas horas antes...


-E aí, qual vai ser?
-Sei lá Muga, vamos no Sacristia encher os cornos. Que tal Dentinho?
-Pode ser, mas vocês sabem que lá é fraco de mulher. Ajeita o cabelo. –Mas foda-se, tá tarde mesmo...
-Então partiu. Falei. –Muga, aproveita e taca fogo!
-Claro Molusco.
-É! Ri Dentinho.

Partimos com a Fiat prêmio enfumaçada em direção a Bangu. No tape rolava Pixies revezando com Cure. Já estava tarde, mas estávamos na pilha, fazendo jus a energia dos 21 anos.

O Sacristia era o bar dos punks e da galera alternativa da zona oeste do Rio. Era um casarão com pé-direito gigante e TVs velhas passando Pantera cor-de-rosa e Pica-pau; rolava uma iluminação sombria e um som de qualidade. Uns shows bem legais, como do Zumbi do mato, faziam parte da programação não programada do bar e, o mais importante: o dono tinha trabalhado no Adrenalina, portanto, sabia todos os drinks fodas que já inventaram.

Chegamos e pegamos uma mesa de frente pro balcão. Como a tradicional fome lariquenta dominava, pedi:
-E aí Marcellus, beleza? O que tem de bom pra mastigar?
-Fala Molusco...que cara é essa, hein? Riu. -Que tal um sanduba de lascas de pernil com tomate e alface?
-Demorex, vou nesse sandubola mesmo! Vocês não vão comer nada? Perguntei pros dois.
-Hãã!? Se vira Dentinho com a cara deformada, estilo quadro de Picasso caído. Apesar de não balbuciar nada, o conhecia suficiente para saber que comeria até o dedão do pé.
-Eu vou num desse também. Falou Muga, com a cara monstrenga também.
-São três Marcellus! E três cocas também, com gelo gelado! Gritei.

Não demorou muito e eles chegaram, devidamente arrumados e apresentados, tinham uma aparência ótima. O pão era fininho, seguido das lasquinhas de pernil molhadinhas, com uma micro camada de maionese, e por cima, alface, tomate e umas rodelinhas de cebola. Que coisa mais bonita de se ver. Hmmm.

Dei uma golada demorada na coca, daquelas que estufam os olhos. Segurei o sanduba com as duas mãos, abri a boca quase deslocando o maxilar e pensei: -Porra, umas três mordidas dessa, e eu serei o cara mais feliz do planeta. Quando dei a mordida celestial ainda ouvi o Muga:
-Se liga que tem...
-AAAAAAAiiiiii!!! Gritei de dor. Algo havia penetrado pelo meu crânio e dado uma alfinetada no cérebro.-AAAiiii!!!

Puta merda. Esqueci de tirar a porra do palito de dentes que atravessava todo sanduba. Agora ele estava cravado no céu da minha boca. Segurei e puxei; senti gosto de sangue e começou a latejar. Muga e Dentinho estavam se cagando de rir. O jeito era tapar o buraco com lasquinhas de pernil.

-E aí, qual vai ser? Perguntou Dentinho com a boca cagada de maionese.
-Marcellus, chega aí! Gritei.
-Opa, tava bom o sanduba?
-Foda! Tirando o fato de quase me matar com um palito de dentes. Mas fala aí, o que recomenda pra beber?
-Que tal o Perdão Senhor? Perguntou olhando sério para nós.
-Que porra é essa? Vem o quê? Perguntou Dentinho.
-É pra macho, vem de tudo um pouco e mais um toque secreto misturado com limão. E aí, vão encarar? Olhou sério de novo. Bolei.
-Vamos pedir um pra ver qual é, se for bom a gente pede mais. Falou Muga.
-Hahaha, tem que ser um de cada vez mesmo, vocês já vão entender. Saiu Marcellus e falou com seu sócio, que nos olhou com cara de despedida. Não entendi nada.

Enquanto isso, a Pantera cor-de-rosa tentava passar por um campo minado e eu estava com o céu da boca explodindo de dor. Na entrada, tinha uns quatro punks com camisa do Exploited e da Anarquia; no canto esquerdo, uma mesa com duas lésbicas se pegando. Alguém montava um bateria precária no outro canto, e de fundo musical, Sister of Mercy fazia a festa. Curiosamente o bar estava lotado na calçada, onde uma galera dividia uma garrafa de cana trazida sei lá de onde.

-Aqui, preparado para los tres amigos. Aparece Marcellus com uma taça gigantesca, tipo aquela de sorvete do Viena, transbordando de um líquido esverdeado e turvo, com a borda cravejada de açúcar.
-Caralho! Deve ter um litro de birita aí! Se espanta Dentinho.
-Deve tá o maior suquinho de limão. Desdenhei.

A taça gigantesca foi colocada ao centro da mesa, cada um recebeu um canudinho e começamos a secar a taça juntos. Tipo corrida.
O gosto era fantástico, dava pra perceber vodka, rum e tequila. Matamos rápido, tava levinho, bebida de moça.
-Vê outro Ki-suco desse. Pediu Muga rindo à toa.

Enquanto o segundo estava sendo preparado, no canto da bateria já tinha agora um baixo e uma guitarra. Por ser uma Flying V, desconfiei que seria uma noite hard. Beleza. E as minas continuavam a se pegar, que beleza...

-Chegouuuuu! Fala Marcellus aterrissando a nova dose na mesa. –Vão devagar, isso é sério.
-Ki-suco, Ki-suco! Riu Muga, pegando uns cubinhos de gelo e jogando dentro na minha camisa.
-Tá maluco, Muga! Porra.
-Hahaha! E joga gelo no Dentinho também.
-Porra Muga! Tá desperdiçando gelo! Vamos beber.
-Corrida então. 3, 2, 1, vambora macacada! Gritei.

Enquanto enxugava, percebi que os olhos do Muga estavam ainda mais juntos. Quando isso acontecia, era sinal de que ele estava entrando em outra dimensão. Dentinho estava com a cara de borracha, paralisada num sorriso eterno. Fodeu, mas curiosamente estávamos bem, ainda não tinha batido nada, muito estranho.

-Essa acabou rápido demais, pede outra aí Molusco. Falou Dentinho.
-Vou ali fora ver qual é. Levantou Muga.
-Senta aí, vamos tomar mais uma. Falei.
-Vou ali e já volto, preciso respirar.

Muga levantou, se dirigiu à porta num zigue-zague preocupante e sumiu.

-Muga tá louco, ele é fraco pra bebida. Riu Dentinho.
-Olha ela aí! Aparece Marcellus com a terceira dose de suquinho. –Cadê o maluco que tava aqui?
-Foi dar uma volta. Falei. –Deve ter ido comprar uma Schweppes. Hahaha.

Tudo parecia tranqüilo, tirando o fato do Muga ter sumido há alguns minutos, deve ter conhecido alguma maluca lá fora. Melhor pra ele.


-Fala aí Dentinho, birita tranqüila, só tem tamanho.
-Podes crer. E Muga, hein? Tô preocupado, acho que levaram ele.
-Levaram ele? Ta doidão? Como assim?
-Acho que raptaram o Muga. Falou Dentinho mamando o Perdão Senhor.
-Como raptaram? Quem iria levar o Muga? Um pé-rapado como a gente.
-Essa porra de tirar os órgãos... isso é foda!
-Os órgãos do Muga devem estar todos podres. Não servem nem para pôr num babuíno. Ri.
-Levaram o Muga! Levaram ele, tô te falando! Começa e se desesperar Dentinho.
-Calma aí porra! Vamos tomar só mais um suquinho, ok? Daí a gente procura ele.
-Marcellus! A saideira, please! Caprichado!

Se bem que Dentinho falando daquela maneira, começou a me deixar preocupado. A quarta dose chegou junto com os primeiros acordes da banda do canto escuro. Mal demos o primeiro gole e Dentinho levantou.

-Vou recuperar o Muga! E saiu, totalmente fora de prumo, indo em direção à porta. Sumiu.


Fiquei sozinho na mesa e a banda começou a quebrar tudo. Foi dando uma sensação de vazio e solidão, e nada dos caras aparecerem. Que merda.

Resolvi procurar meus amigos, matei o quarta dose que desceu muito forçada, levantei. Olhei para fora e tracei uma reta imaginária, o som estava embaçado, a banda era uma merda e o ambiente estava mais escuro que nunca. Dei o primeiro passo.

-Porra, tá foda de andar. Falei olhando pras lésbicas que, por sinal, cagaram pro meu comentário.

Dei uns três passinhos rápidos e um lento pra tentar me equilibrar, quase voei na banda num mosh involuntário. Dei um pulo pro lado e me agarrei na porta, que porra é essa?
Desci dois degraus quase que pagando promessa e avistei Dentinho chorando.

Aí então...

Saí desnorteado... Foi uma porrada e tanto na cabeça. Quando cheguei na calçada, a cena que vi foi terrível. Apenas os pés estavam pra fora... Dentinho olhou pra mim e falou chorando:
-Atropelaram o Muga, Molusco. Dentinho se agachou na frente do carro. -Ele tá preso lá embaixo.

Só faltava essa, logo o Muga, e na frente do bar...puta que pariu. Mas espera aí, conheço esse carro. Caralho, minha cabeça tá pesando uma tonelada. Tombei com a cara no chão.


-Dentinho, esse carro é meu! Falei caído. Esse é o porcomóvel, Dentinho!
-Filho da puta!! Você atropelou o Muga! Chora e grita Dentinho.
Começo a chorar. –Atropelei o Muga...Juro que não vi!!!! Que merda! Eu não vi!! MMMUUUUGGGAAAAA!!!!! Dentinho, como isso foi acontecer? AAhhh!!! Mugaaaa!!! Fala comigo, fala!!! Me agarro em Dentinho, desesperado.
-Me solta, assassino! ASSASSINO!!! Chorando histérico. -Como pôde? Ele é nosso amigo! AHHH... Como vamos falar pra mãe dele? Como? Assassino! Você vai falar! Me solta! E abaixa a cabeça.

Todos chorando, inclusive o Muga.

-Peraí, o Muga tá vivo! O MUGA TÁ VIVO!!! PORRA!! MILAGRE!! CARALHO!! SAI DAÍ MUGA!!
Berrei com sorriso gigante.
-Ele tá preso nas ferragens! Gritou Dentinho. –Tá preso...

-Muga! Tenta sair! Gritei.

Muga tentava levantar como que fazendo abdominal e porrava com a cabeça no fundo do carro. Louco.
-Pega um pé que eu pego o outro. Falou Dentinho. –Vamos puxar.
-Ok, 1, 2, 3, puxa Dentinho!

Fomos interrompidos por um cara com a cara do monstro sem rosto do Scooby-doo.
-Por acaso, algum de vocês tem Lucky Strike? Perguntou.
-O quê? Tá maluco?
-Serve Marlboro? Perguntou Dentinho.
-Não, só Lucky Strike. Tem não né?
-Nem tenho, porque Lucky Strike não se acha assim por aqui, mas na Zona Sul....
-Caralho! O Muga tá preso porra! Gritei.

Começamos a ralar o Muga no asfalto, que berrava como um porco. Depois de umas quatro tentativas, e vários ralados, ele se soltou.

-Muga tá vivo! Nos abraçamos. Ele chorou com seus olhos juntos.

Os três estávamos em frente ao bar, caídos no asfalto, precisamente na sarjeta. Eu fui entender que aquela vaga foda em frente ao bar era uma cilada do destino. Caímos nela. A calçada estava lotada de gente e a gente chorando.

-Vamos embora! Paga lá Dentinho! Falei dando minha parte pra ele.
-Impossível! Sem condições.
-E eu fui atropelado. Riu Muga.
-Depois a gente paga, vambora! Falei.

Tentei algumas vezes abrir o carro em vão. Em volta da fechadura já estava completamente arranhado... quando ouvi uma voz feminina:
-Vocês não vão embora assim não, né?

Quando olhei, uma mina loira demais pro lugar, com curvas angelicais, nos repreendia com cara de cachorro na chuva.

-Vamos sim, estamos bem. Falei, sem noção.
-Eu perdi um amigo assim. Disse a loira.
-Eu também, o Porcão!
-É ele mesmo! Você conhecia ele?

Todos conheciam o Porcão. Ele comeu um cadarço de Mad-rats imundo depois de uma partida de porradoball, no intervalo do pré-vestibular. Eu o vi enfiar um cachorro-quente inteiro na boca, após uma mina perguntar se ele queria um tasco. Esse era o Porcão.

Chorei pela coincidência, mas conseguimos abrir o carro e pulamos dentro. Muga não tinha forças pra sentar e foi deitado entre o banco da frente e o de trás. Dentinho ficou do meu lado de co-piloto, mesmo que meio desmaiado e eu fiquei responsável pela condução segura. Fodeu. Deixamos a loira e os punks fedorentos para trás.

O mais impressionante na volta foi o copy-paste de carros e bumbas, todos estavam duplicados, procurava passar sempre no meio. Dei algumas freadas bruscas, e nessa hora Dentinho berrava algo do tipo: - Caralho!

No caminho, Muga falou:
-O Antônio me roubou!
-Hã!? Tu tá doidão ainda? Já não basta se meter embaixo do carro?
-Comprei um pão e ele segurou meu troco. Balbuciou Muga.
-Filho da puta, isso não se faz! Falou Dentinho.
-É! Se eu pego ele, ele tá fodido. Ele tem que devolver meu dinheiro.
-Pára lá Molusco. A gente vai pegar a grana do Muga.
-Puta merda!

Parei em frente a padaria, saímos do carro e começamos a gritar:
-ANTÔNIO, SEU FILHO-DA-PUTA, DEVOLVE O DINHEIRO DO MUGA! ANNNTTTÔÔÔNNNIIIOOOO!!!! FILHO-DA-PUTA LADRÃO!!!

De repente, do nada, aparece meu vizinho Nélio, de pijamas e com uma cara de que tava muito puto.

-Que porra de gritaria é essa? São 4:30 da manhã!
-O Antônio não devolveu o troco do Muga! A gente quer o troco do Muga, porra! Gritou Dentinho.
-É isso aí! Falei. –Antônio é um ladrão filho-da-puta!
-ENTÃO VÃO PARA O ANTÔNIO, CARALHO! AQUI É A PADARIA DO SEU MÁRIO!!!! Berrou Nélio.

Deixei meus comparsas em suas residências e consegui arduamente chegar na minha toca. Abracei a privada pro mundo parar de girar e pedi perdão senhor.

FIM


Nenhum comentário:

Postar um comentário