sábado, 27 de dezembro de 2008

A GOTA

Partimos já tarde. Como sempre, um ou outro atrasa com as tralhas desnecessárias, mas enfim partimos. Na estrada, tacamos fogo numa ponta e começamos a filosofar, enquanto Zé Ramalho berrava no cd portátil ligado num toca-fitas através de uma gambiarra duvidosa.
Enquanto nos afastávamos do Rio, mais forte ficava o cheiro do mato e de merda de vaca, ótimo.


Duas horas depois, Muga se manifestou:
-Puta que pariu, vocês não estão com fome não? Tá foda!

-Já estamos quase em Casimiro, lá a gente acha uma porra de um lugar. Falou Dentinho. -E a sede? Minha língua até colou no céu da boca!

-Há! Também você foi vacinado com agulha de vitrola! Não para de falar um segundo! Disse.

Quando chegamos em Casimiro, todo comércio já tinha fechado, rodamos por toda cidade e nada. Eis que avistamos uma barraquinha de cachorro-quente, daquelas que expõe todas as coisas pra pôr no pão, da batata palha ao ovo de codorna. Barraca de cachorro-quente tem uma lado bom e outro ruim. O bom é ser gostoso pra caralho, o ruim é ser gostoso pra caralho.

-Porra, ali! Tem um serve-serve ali! Pára Molusco! Berrou Muga.

A barraquinha devia estar na beira da estrada há alguns dias, talvez meses. Ela tinha uma película de asfalto, fumaça e mais não sei o quê que revestia toda estrutura e seus ingredientes, a travessa com molho por exemplo, podia jogar uma moeda que não afundava, estava estranho. Mais estranho era o vendedor, também revestido da película imunda, falou com uma voz de filme de terror:

-Vão querer de quê? Tem de sarsicha e de lingüiça.

Olhando um pouco de perto descartei de cara a lingüiça. Nunca tinha visto uma verde metálica.

-Vou querer de lingüiça! Me arruma uma colher também. Disse Muga. Batendo na barriga umas três vezes.

Caralho, Muga deve ser daltônico.

-Outro de lingüiça por favor, e também quero uma colher. Pede Dentinho. Rindo pra mim e puxando um banquinho pra sentar.

Eita, será que eu sou daltônico?

-Quero o meu de salsicha. Pedi.

Antes a salsicha cinza. Já tinha visto algumas salsichas cinza na vida, agora lingüiça cor de mosca-varejeira, nunca.
Muga pegou a colher e começou a traçar apenas o molho, quando terminava, completava de novo e mandava ver. Fez isso algumas vezes e depois destruiu o resto do cachorro-quente. Dentinho usou da mesma tática e chafurdou bonito. Eu comi da forma clássica, apenas abusando dos condimentos radioativos.
Apesar da aparência, o cachorro-quente estava bem bom, ou nossos cérebros amarrotados nos dizia que estava bem bom, vá saber. Matamos umas cocas de garrafa também. Essas sim desceram lindamente pela goela, enchendo com as bolhas geladas nossos olhos de felicidades.


-Partiu?


-Partiu.

Aproximadamente 25km de Estrada de terra bem detonada nos separava do paraíso. Mulheres bicho-grilo, algumas de butique, mas vale, ambiente legalize, cogumelos de merda de boi zebú e muita cerveja num cenário de artesanato hippie e cachoeiras divertidas. Porra, quero morar lá.

-Estamos a caminho. Melhor acender um. Falou Dentinho.

-Já é! Falei

-Ééé! Grita Muga já pegando o backpower no nosso esconderijo ultra-secreto. -Tá na mão!

A estrada estava toda fodida e já estava de noite. Isso nos obrigava a ir a uns 15km por hora, ou seja, quase duas horas nessa brincadeira de moer molas. O papo estava quente, o assunto era pra variar, mulheres e suas diversidades e os três manifestavam suas testosteronas no auge dos 21 anos, sempre rindo pra caralho. O papo foi subindo de freqüência, e já estávamos berrando dentro do carro, numa estrada escura e mágica, ideal para pouso de nave alienígena. Percebi então que Dentinho estava em silêncio a algum tempo, sendo isso raro, perguntei:

-Qual é Dentinho, tá tranqüilo? Ficou calado de repente.


-Tá tudo tranqüilo, acho que foi a azeitona que não bateu bem. Mas já estou bem. Fala olhando pra janela.

-Beleza então. Se quiser, dou uma encostada aqui e você estraga o mato rapidinho. Que tal?


-Não precisa, já passou. Dá um sorriso meio torto.

Não sei não. Pelo retrovisor, eu avistei na testa de Dentinho, a maldita gota multicolorida. Esse tipo de gota que brota normalmente no lado esquerdo da testa, é uma espécie de aviso do corpo que ele vai entrar em colapso. Era uma questão de tempo. Pobre Dentinho.

Por volta das 23 horas chegamos no Sana. Logo na entrada da cidade, uma construção em forma piramidal nos mostrava de cara seu lado doidão. Legal.
A cidade é tão pequena, que atrás da placa de “boas vindas” tinha o “volte sempre”. Em quase todo o caminho, um rio acompanhava a gente pra mostrar que a natureza estava mais viva que nunca.
Passamos por um bar que rolava uma sinuca e nas caixas penduradas Hendrix tacava fogo na guitarra, dava pra ver umas hippies malucas mamando umas latas de brejas.


-Caralho, pára aí Molusco! Berrou Dentinho.

-Melhor deixar nossas coisas em uma pousada e voltar, né não? Perguntei. Apenas desacelerando o carro para vermos melhor a cena do crime.

-Sei lá porra. Só sei que temos que estar ali. Disse Dentinho.


-Beleza. Vamos deixar nossas tralhas rapidinho e voltar. Acelerei.

Achamos uma pousada riponga, jogamos nossas mochilas no quarto e partimos loucos pro boteco. Um exótico boteco rústico, todo de madeira e cimento. Presença forte da cor azul, uma mesa de sinuquinha e um balcão de madeira reaproveitada. Tinha uns posters do Jim Morrisson, Janis e Hendrix. Umas mandalas penduradas decoravam a entrada e o chão de madeira fazia uma barulho do tipo “alguém vai se foder uma hora”.
Havia uns caras malucos já encornados num canto com uns copos vazios, uns quatro pelo menos e mais uns dois casais dançando de forma psicodélica “Im Spy” do Doors. E na mesa de sinuca, três minas se divertiam com algumas garrafas, rindo e falando alto. Gostei do lugar.

Compramos umas fichas de sinuca e pedimos às três para jogar conosco. 3X3. Perfeito. Começou o papo:

-Como fazemos? Mata-mata? Perguntei.

-Sim. Disse uma das meninas virando um copo.

-Como se chamam? Perguntou Dentinho.


-Eu sou a Clara, ela é a Ana e ela é a Elaine.

Clara é branca de cabelo preto curto, tipo meia porção bem servida, uma bela bunda e parecia ser engraçada. Ana é grande, cabelo marrom liso, parecia gostar de sexo e estava já pra lá de Marrakesh e Elaine, tinha o top da Clara, mas com a pele mais morena e peitos maiores. Podiam jogar as três para o alto, que onde caísse, seria ótimo. Não haveria disputa nessa noite.

-Legal, eu sou o Dentinho, ele ali é o Molusco e aquele é o Muga.

Bem, nós três juntos não somos nenhum padrão de beleza. Pra falar a verdade, devemos parecer caras estranhos e no mínimo engraçados. Eu estava acima do peso pra variar, cabelos gigantes, queixo pequeno, orelha sem lóbulo, pernas tortas e mãos de macaco, viradas pra trás. Dentinho também estava cabeludo, loiro duvidoso, dentes inversamente proporcionais ao nome e dedos fura-bolo dos pés bem maiores que o resto dos outros dedos e Muga também marcava de cabelão, moreno com o corpo idêntico ao do Patolino e olhos muito juntos. Definitivamente tínhamos chance.

-Quem mata quem? Riu Muga passando giz no taco.

-Então, vamos formar duplas de casais, quem você quer Molusco? Eu quero a Ana. Disse Dentinho.

Dentinho, como um bom rato velho da noite, já tinha deixado claro que queria a doida com cara de tarada. Conhecia essa raposa há alguns anos e ele já não me enganava, filho da puta rápido.

-Ok Dentinho, fico com a Clara, acho que ela joga bem. Disse passando giz no taco. –Aproveita e pega uma breja lá.


Desta forma eu não dava opção pra Muga, que duplou com a Elaine. Não que ela não valesse, mas com certeza estava um pouco abaixo na minha avaliação. Mas ele curtiu.

As minas jogavam bem e estavam doidas. Todas moravam em Friburgo e torravam um. Abrimos a cerveja e começou a chover pra caralho.


-Ihhh, ó a chuva. Falou Elaine se debruçando no murinho.

Olhando bem daquele ângulo, percebi que me enganara, Elaine estava no páreo sim, Muga deu sorte, ela tinha aqueles estabilizadores de polegar logo acima da bunda. Legal.

-Vai Dentinho, é sua vez. Eu disse olhando pra ele, que estava um pouco afastado da mesa.
-Dentinho! Dentinho! Insisti.-Vai maluco, é sua vez.


Ele me olhou com uma cara de desespero mortal. Eu havia percebido que ele se calou há umas quatro rodadas. O pior que ela, a gota maldita, voltava a brotar no mesmo lugar, fodeu muito.

-Molusco, me dá chave do carro. Pediu Dentinho angustiado, passando o taco de uma mão para outra rapidamente.

-Que houve bro…


-Dá rápido maluco! Gritou.


-Toma! Joguei meio torto e ele pegou com um ninja treinado. Era sério.

Ele saiu como um velocista. Entrou no carro, virou a chave, abaixou a cabeça no volante e não arrancou. Nessa hora eu percebi que ele devia estar fazendo cálculos de tempo.
Saiu do carro e entrou como saiu, passou por nós e se trancou no banheiro.


Dá-lhe fichas e cervejas. Eu não sentia mais meu centro de gravidade. Já estava falando umas atrocidades para maluca e Muga fazia o mesmo. Já devíamos estar na 35ª partida quando a porta do banheiro abriu. Todos se viraram juntos em direção do banheiro. Dentinho me sai de lá igual a um zumbi molhado, mas muito molhado. Ele passou por nós, foi lá no balcão e saiu do bar com o dono do bar. Bolei.


Em pouco tempo, entram os dois. Nessa hora eu vi que meu amigo molhado é um pessoa de caráter ímpar. Ambos carregavam baldes cheio d’água, se dirigiram ao banheiro, depois saíram de lá e repetiram o processo mais uma vez. Puta merda, Dentinho empenou a privada.

Ele pegou o carro e foi pagar um banho na pousada, fiquei com Muga e as malucas no bar secando umas garrafas, e dá-lhe chuva.


Dentinho retorna cheirosinho e a doida da Ana fingia que nada tinha acontecido, foda-se, todos cagam mesmo, deve ter pensado.

-Que chuva foda, nos fodemos. Falou Ana errando a bola e se matando no canto direito.-Porra, essa mesa tá desnivelada!

-Porquê? Perguntou Dentinho arrumando as bolas.

-Sei lá, talvez por causa do chão de madeira podre.

-Não doida, porquê vocês estão fodidas?

-Ah tá. Riu Ana. - Estamos no camping Jamaica, a essa altura nossa barraca deve ter descido rio abaixo.


Foi a deixa.


-Não seja por isso, vamos geral lá pro quartinho. Tem três camas, onde dormem três, dormem seis. Brinquei. E me encaminhei para o banheiro, estava com umas 5 garrafas de cerveja querendo sair.

-Então beleza. Falou Ana.

Quando entrei no banheiro lembrei de Dentinho. Era um banheiro apertado, não tinha espaço para sentar sem que os joelhos encostassem na porta. Fazia calor pra caralho ali dentro. Imaginei meu amigo se contorcendo e tentando não fazer barulho, deu uma peninha. Mas tudo bem, nem chegamos direito e já vamos arrastar três doidas pro matadouro. A noite prometia.

Entramos os seis no carro, maior zoação. Botei Mutantes pra berrar no som e partimos para a pousada. O fiat prêmio 1.3 com pneus carecas sofria naquelas ruas de barro com chuva, patinava e batia toda suspensão com todo mundo cantando, sentados um no colo do outro e virando umas latas de cerveja. Estava ficando bom.

Chegamos na pousada e entramos cambaleando pelos corredores. O dono olhou pra gente e riu. Era hippie old school e sacou paz e amor na situação. Muga demorou uns 3 minutos para abrir a porta, entramos.


O quarto era pequeno com três camas de solteiro, ainda estava no cimento mas puseram umas mandalas penduradas para disfarçar, como no bar. Ficamos ali, dividindo as camas, fumando um e conversando sobre faculdade, doideiras e músicas. Papo bom, de repente percebi ausência de Dentinho mais uma vez, e o pior, a gota destruidora de honra surgia mais colorida que nunca. Puta que pariu.
Observei seu comportamento. Ele parecia absorto, olhando para o nada. Suas mãos se enroscavam e apertavam o lençol. Desespero total. Ele levantou em um salto e caminhou elegantemente pro banheiro, que ficava ao lado da minha cama.

-Com licença, já volto. Falou Dentinho.

Todos acompanharam seu trajeto até o banheiro. Meu Deus, fodeu, malditos decoradores hippies! O banheiro seguia o estilo Sana e simplesmente não tinha porta, no lugar, uns barangandans com pedrinhas e flores coloridas, daqueles que faziam “traratrararata” quando passava alguém. Quando ele entrou eu vi o terror em seus olhos. Eu me mataria no lugar dele.
Como eu era a pessoa mais próxima de não porta do banheiro. Comecei a ouvir uns barulhinhos constrangedores, e por isso aumentei o som da minha voz na tentativa de preservar meu brother.

-Entendo, então a Faculdade em Friburgo é uma merda. Falei alto.
-É sim, por isso estamos pensando em mudar pro Rio. Disse Ana, acendendo de novo.

-ENTENDO, SEI COMO É….

-Molusco, você está berrando. Disse Elaine.


Nesse instante, os barulhos começam a ficar mais barulhentos. Procuro ajudar Dentinho, gritando qualquer merda num fôlego só.

-ESTOU BERRANDO PORQUE É RUIM MESMO NÃO PODER CONTAR COM UMA FALCULDADE, PRINCIPALMENTE QUANDO ESTÁ SE PAGANDO. ISSO É MAIOR SACANAGEM, IMAGINA, SE PAGA CARO PRA CARALHO E NÃO CONSEGUE APRENDER PORRA NENHUMA, QUE MERDA, IA FICAR MUITO PUTO. SE EU FOSSE VOCÊS DENUNCIAVA ESSA PORRA PRUM JORNAL QUALQUER.

Quando parei para respirar, veio ela, a metralhadora peidorrenta que reservara seu “Gran Finale”, acabando com a moral de qualquer ser que estivesse ali naquele vaso florido.
-PRU PRU PRU PRUUUUUUUUUUUU…. PFUUU, PFUUUUU…. PRÁ PRÁÁÁÁÁ. Berrou o cú.

Imediatamente houve uma histeria coletiva de gargalhadas, as minas deviam estar quase se mijando de tanto rir, porque eu estava. Dentinho se revoltou lá do vaso:

-Até parece que vocês nunca cagaram. Não fode porra!

-HAHAHAHA! Todos rindo. HAHAHAHAHA! Muga caiu da cama, estava passando mal. Elaine se contorcia e batia com a mão na cama.

Levantei chorando e fui olhar meu amigo, talvez precisasse de algo. Me deparei com uma cena terrível. Dentinho não sentava no vaso, ele estava como um gárgula agachado, com os dedos fura-bolos dos pés dobrados para baixo, equilibrando seu corpo.

-Não encosto minha bunda em vaso estranho. Falou, suando como uma capivara.

-HAHAHA. Sem ar de tanto rir, voltei pra cama.

É claro que não comemos ninguém. Dentinho voltou calado e de banho tomado, deitou ao lado da mina e dormiu. Estava cansado. Fizemos o mesmo. Porra de noite maluca, e a chuva continuou.

FIM

2 comentários:

  1. Ulix é um contador de historias nato. Está bem escrito, com o ótimo timing dele, mas ao vivo é ainda melhor. Isso aqui tinha que ser um video-log. Vou além, isso aqui tinha que ser roterizado e filmado. E é só a primeira estória das muitas que dariam uma longa série - algo tipo "As psicodélicas aventuras de Ulix e sua turma". A versão hard-core de juba e lula!! ;-)

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  2. Porra, aí. Tá vendo... O cara deu o papo certinho e não é que funfou, manééé!

    Aí, molusco, eu te sigo no youtube, no twitter e no facebook, mané.
    Eu conto umas histórias também, mas sempre pegando algumas sacadas tuas! Gostaria muito de me corresponder com vc. Facebook seria ideal, mas vc atingiu o número máximo de amigos, então fodeu. Vc poderia me adicionar, eu estou sempre curtindo suas paradas. Queria poder comentar os seus posts, pelo menos. E isso não é possível para quem o segue, só para quem for seu amigo.

    Sinceramente, diversas e inúmeras vezes eu deixo de ler, estudar ou ver tv para reassistir algum de seus contos. Alguns eu sei de cor, como o ninfetamina, a gota e nave e lua.

    Se vc estiver em um momento de compaixão e/ou transe canábico, me adiciona no facebook mané, Danilo Firelion ou (Dan RibLey).

    Pode apostar todas as suas fichas, aqui na minha cidade, onde os alternativos e inteligentes todos gostam dos teus vídeos, eu sou o fã número 1 dos seus contos. Já escutei entrevista tua em rádio, leio teu blog e os carrrrrrrralho!

    Portanto, dê uma moral pro teu brother aí...

    Só mais uma coisa. Dentinho é foooooooooda, mané! (:

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